Fazer um Filme, segundo Federico Fellini

Com prefácio do aclamado autor italiano Italo Calvino, esta publicação revela ao leitor a profunda ligação de Fellini com o cinema e sua paixão pela arte de filmar. Fazer filmes era tão necessário para a vida do diretor como o oxigênio é essencial para que o fogo queime. Questionador, Fellini também propõe algumas discussões: “Como dizer de que maneira nasce a ideia de um filme? Quando e de onde vem, os itinerários tantas vezes desconexos ou dissimulados que percorre?”

O livro Fazer um Filme é um depoimento sincero, onde o diretor italiano termina por definir sua vocação: “...fazendo filmes só me proponho a seguir esta inclinação natural, a contar histórias por intermédio do cinema, histórias que fazem parte da minha natureza e que gosto de narrar numa inexplicável mistura de sinceridade e de invenção, de vontade de chocar, de me confessar, de ser a moral, o profeta, a testemunha, o palhaço... de fazer rir e comover.

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1.

Os relacionamentos entre diretor e produtor quase sempre são dramáticas, e de qualquer forma, raras vezes podem ser formulados em termos de colaboração, a qual, se existe, é a mais tênue e moderada possível e sempre acaba configurando um extenuante duelo constituído de astúcia, golpes baixos, persuasões patéticas ou exibições ameaçadoras. A relação diretor-produtor está entre as mais cômicas e insidiosas, viciadas desde a raiz por um defeito de incongruências, por um antagonismo inconciliável. De um lado está o diretor, com suas ideias e histórias, do outro, o produtor, que pensa ser mediador entre o autor e o público e acredita nisso com o furor inspirado de alguns sacerdotes dos templos gregos, que não admitiam nenhum controle no obstinado diálogo com a divindade. Os produtores muitas vezes se comportam como oráculos infalíveis do sentimento e das necessidades do público, enquanto quase sempre sua ideia de público, sua intuição, é completamente abstrata, precede uma realidade inventada por eles, inexistente, contrafeita.

2.

O cinema é um rito ao qual grandes massas se submetem de maneira servil, portanto, quem faz cinema de consumo determina o rumo da mentalidade e do costume, da atmosfera psíquica de população inteiras que todos os dias são visitadas por avalanches de imagens mostradas nas telas. Ele envenena o sangue como o trabalho nas minas, corrói as fibras, pode se transformar numa espécie de tráfico de cocaína, tão indiscriminado e perigoso quanto este, por ser dissimulado, inadvertido. Por outro lado, eu, pessoalmente, preciso de um produtor. Não só porque com ele também chega o adiantamento, mas para ser estimulado a defender o filme das tramoias, desvios, insídias fantasiadas de conselhos afetuosos, imposições que o ameaçam do momento em que decidimos fazê-lo nascer. Esta defesa constante e obstinada é extremamente benéfica para o filme e nos fortalece, nos torna mais fanáticos, intransigentes, ao mesmo tempo que também nos obriga a observá-lo de pontos de vista diferentes, alheios, com suspeição, antipatia, como causa de atritos, problemas, penas... Em suma, na realização de um filme, o produtor é um extremo complementar, existe uma falsa necessidade dele e – embora seja árduo decifrá-la – uma insubstituível utilidade.

3.

O olho humano vê a realidade de forma humana, com toda sua carga de emoções, ideias, preconceitos, cultura é capaz de operações seletivas muito rápidas, sabe evidenciar os elementos mais chocantes.

4.

A mulher não deve se emancipar por imitação, mas sim descobrir uma realidade diferente, a sua realidade. Diferente daquele do homem, mas que a complementa. Seria um passo na direção de uma humanidade mais feliz.

5.

O que sei é que tenho vontade de contar histórias. Francamente, contar histórias me parece a única brincadeira que valha a pena. Para mim, pra minha fantasia, minha natureza, é uma brincadeira necessária. Quando a conduzo, me sinto livre, desprovido de qualquer embaraço. E nisso sou uma pessoa de sorte, posso usar esse brinquedo que é o cinema. Gostaria de ter feito cinema nos anos 20, de ter vinte anos na época dos pioneiros, quando tudo ainda devia ser feito, inventado. Quando comecei, o cinema era um fato arqueológico, já possuía uma história, escolas, há tempos já tinha sido iniciado um processo de intelectualização, um projeto de elaboração de regras, de tendências, de figuras semânticas, de agregados estruturais. Ao contrário, em suas origens era um fenômeno de feira, um espetáculo de praça, e sempre o vejo um pouco assim: alguma coisa entre um passeio com os amigos, o entretenimento circense, uma viagem de explorador. Sempre enxerguei o filme como um momento da vida, para mim não há separação entre a vida e o trabalho, o trabalho é uma forma, um modo de viver.

#maio #fellini